teatro do sensível #1 – caranguejo overdrive

Teatro do sensível: por uma tentativa de organizar a memória deste corpo-público nas salas de espetáculo pré-pandemia. Resgatar os afetos de uma peça de teatro qualquer: um dia, um ingresso, o lugar, o antes e depois de certas apresentações que por motivos alheios à crítica, tão somente pertinentes à subjetividade deste autor que vos fala, se inscrevem num campo de importância e relevância da cena teatral dos últimos anos.

Caranguejo Overdrive

Foi no teatro do SESC Pinheiros que tomei contato pela primeira vez com o trabalho d’Aquela Cia – já bastante conhecida a atuante no Rio. Numa matéria da Folha de S. Paulo, li sobre a peça do grupo carioca que chegava à capital, cuja pesquisa baseava-se no inventivo imaginário do manguebeat recifense e, por extensão, nos escritos de Josué de Castro a respeito da fome e da relação entre homens e caranguejos.

O ator Felipe Marques em sua performance de caranguejo, após cobrir-se de lama em uma das cenas finais da peça. Foto: Elisa Mendes

Eu tinha uma amiga, que, como eu, atriz e jornalista, fazia estágio na comunicação do SESC Pinheiros, e me recomendou fortemente a peça. Fui sozinho, e encontrei, por acaso, uma outra amiga, a dramaturga carioca Carol Pitzer, que, mais tarde, me diria que “para os cariocas, essa peça tem um sentido especial”.

O ator Mateus Macena interpreta Cosme, o ex-soldado da Guerra do Paraguai marcado pelos traumas e pela fome. Foto: João Julio Mello

Em cena, pela primeira vez vi Mateus Macena, este vigoroso ator dando vazão aos movimentos espasmódicos que traziam para seu corpo o choque da confusão agravada pela fome que sentia Cosme, seu personagem. “Não se pode dizer que sou eu que falo, as palavras perdem muita força diante do apetite”. Era essa a primeira frase dita pelo ator Alex Nader ao microfone, e seguia. O texto de Pedro Kosovski é uma preciosidade da dramaturgia contemporânea, e pode ser encontrado publicado, em livro, pela editora Cobogó. E se você, obsessivo por teatro, for procurar por este livro, vai encontrar em seu prefácio o seguinte comentário do autor: “escrito para os 450 anos do Rio de Janeiro, em meio às disputas de territórios da cidade para a realização das Olimpíadas de 2016”.

A narrativa, no entanto, é histórica: após a Guerra do Paraguai, o soldado Cosme volta à capital, marcado pelos traumas da violência e da fome, e encontra um Rio de Janeiro cuja paisagem fora modificada pelo urbanismo higienista. Cosme se dá conta de que perdera a geografia com a qual se conectava não só subjetivamente, mas que também lhe rendia a fonte de sua existência: o mangue, onde era possível caçar os caranguejos, agora se encontrava aterrado.

“Caranguejo overdrive” me deixou altamente eletrizado. Pela primeira vez pude “experimentar” a cena estando na plateia, através de uma pulsão material que saía da primeira e atingia em cheio o corpo do público. Também pude experimentar os efeitos do uso bem sucedido dessa mistura tão tradicional quando perigosa entre o teatro e a música: a banda em cena não tornava o espetáculo um “musical”, inscrito no imaginário do termo, mas expressava uma determinada estética, constituía em si uma linguagem: o noise, o ruído, o frenesi da bateria e a distorção da guitarra encenavam os sentidos do protagonista e carregavam a cena da estética do manguebeat que fora, afinal, uma das raízes da pesquisa empreendida por Aquela Cia. Também foi este espetáculo, esta “peça”, responsável por me apresentar uma dramaturgia capaz de constituir uma crítica histórica, pertinente, a partir de uma linguagem ultra-narrativa, cujo intuito jamais fora ou poderia ser “guiar a cena”, mas tão somente tornar-se “um dos materiais” à disposição da encenação – uma dramaturgia em paralelo, uma dramaturgia-texto.

O ator Eduardo Speroni e o mapeamento gráfico de seu corpo segundo os segmentos do corpo de um caranguejo. Foto: João Júlio Mello

Ver as imagens de “Caranguejo Overdrive” algum tempo depois é sentir o corpo elétrico, o desajuste. Lembrar de algum tipo de afeto ritualístico tão próprio do teatro, tão arcaico, mas conectado, ali, na cena, com a tecnologia que move o presente e o futuro, eletrônica, e por vezes transmitida por um fio desencapado, capaz de dar choque.

ACOMPANHE OS PRÓXIMOS:

2 – Why the horse?
3 – Projeto Brasil
4 – O ano em que sonhamos perigosamente
5 – Baderna
6 – Mãe Coragem
7 – Morro como um país
8 – O jardim
9 – Vaga carne
10 – Roda viva
11 – Mantenha fora do alcance do bebê
12 – Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã
13 – A missão

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